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Coletânea de contos sobrevoa universo de Dalton Trevisan

Leia apresentação de Rogério Faria Tavares para "Os elefantes viriam pela manhã", antologia com histórias inéditas lançada para homenagear o Vampiro de Curitiba

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Rogério Faria Tavares

Especial para o EM


“Para ecoar os cantos da corruíra...”

Em cerca de oitenta anos de vida literária, Dalton Trevisan publicou mais de cinquenta livros, entre 1945 e 2024. Rigoroso, avesso a concessões, sua intensa produção escrita conviveu, desde o começo, com uma de suas famosas obsessões: a reescrita. Não foram poucas as vezes que emendou ou alterou seus contos, num trabalho incessante, de que nunca abriu mão. Intrigado pela potência (ou impotência) da linguagem, ou uma existência forçando os seus limites, alargando suas possibilidades, torcendo os seus efeitos, explorando algumas de suas nuances, como a insinuação, a elipse, a lacuna, a pausa, o não dito e o maldito, o fragmento, o silêncio. O resultado foi a monumental obra que ergueu, praticamente recluso – até quase o final – na casa da Rua Ubaldino do Amaral, 487, onde ou nove décadas.


Foi exatamente sobre esse robusto patrimônio cultural brasileiro que se debruçaram os contistas convidados a dialogar, no presente volume, com os textos de Dalton Trevisan, de certo modo ‘reescrevendo-os’, cada um à sua maneira, numa evocação a uma atitude tão típica do curitibano. Como num palimpsesto, é possível enxergar estas treze histórias dispostas umas sobre as outras, e todas elas sobre aquelas escritas por Dalton, incidindo sobre os rastros por ele deixados, rasurando-os e modificando os seus aspectos, fazendo ecoar os cantos da corruíra, modulando seus tons, trocando as suas penas...


De variadas origens, formações e trajetórias, mas igualmente generosos, os contistas convidados aceitaram o desafio de abrir novas perspectivas para relacionar-se com o repertório daltoniano, percorrendo o seu complexo e fascinante universo e levantando boas pistas sobre ele, num gesto de desbravamento, mas também de invenção de outros mundos a partir daqueles gerados pelo autor de “Cemitério de elefantes”. A consequência pretendida se confirmou: esta coletânea oferece criativos e inesperados pontos de o à prosa de Dalton - não sem refletir sobre ela, não sem mirá-la criticamente, não sem gentilmente convidá-la a figurar nos debates que se travam na atualidade.


Província, cárcere e lar, Curitiba habita cada uma das páginas deste livro, mesmo que vague por outras partes do país, ganhando o contorno de imprevistas geografias, como a São Paulo de Noemi Jaffe, o Recife de Adelaide Ivánova, a Campina Grande de Cristhiano Aguiar ou a Belo Horizonte de Carlos Marcelo, vista em 1947. Cenário para as ilusões e os desencantos de tantos ‘pobres diabos’, a capital do Paraná é detalhadamente retratada na trama joyceana de Luci Collin; é por onde desliza o gateiro de Luís Henrique Pellanda; por onde circulam a mítica Patachou e o revivido Dario, de Mateus Baldi, e onde sofrem, sem trégua, o ‘menino magricelo’ e a ‘polaquinha’, de Rogério Pereira.


O violento cotidiano da metrópole começa pelas manhãs pintadas por Ana Elisa Ribeiro, e continua até a madrugada, nas noites insones e enluaradas de João Anzanello Carrascoza. Está na realidade e nos palcos da vida, sobretudo nos embates entre mulheres e homens, montados por Veronica Stigger e encenados por João, Maria e Joaquim. Irresistível, aqui, adiantar que a Maria de Verônica vai à forra, bem como a protagonista de Ana Elisa; a Jéssica Eduarda, de Adelaide Ivánova; e a Lúcia (Lady Nosferatu), de Cristhiano.


Os haicais de Caetano Galindo e as noventa e nove daltônicas, de Marcelino Freire, homenageiam a longa jornada do autor em busca do máximo significado na forma ideal, na economia, na condensação e na síntese, em olhares que capturam momentos fundamentais da trajetória de Dalton, sempre arredio a filiações ou a modismos, invariavelmente fiel a si mesmo e à sua vontade de experimentação, em plena liberdade e renovado vigor.


Dalton se foi em 9 de dezembro de 2024, pouco mais de seis meses antes de completar seu centenário, em 14 de junho. Sua falta não foi sentida somente nas ruas de Curitiba, por onde costumava caminhar com grande frequência, quase sempre incógnita, de boné e óculos escuros, recolhendo (sugando...), discretamente, das praças, dos parques, dos bares e das lojas, a vital inspiração para o desenvolvimento de seu ofício. Foi lamentada em todo o país. Seu legado, entretanto, tem força suficiente para impactar, ainda, diversas gerações de leitores. Se esta coletânea contribuir, de algum modo, para que a voz desse notável autor permaneça ressoando, ela terá cumprido, com satisfação, o seu objetivo.


ROGÉRIO FARIA TAVARES é jornalista, Doutor em Literatura e membro da Academia Mineira de Letras (AML)

Depoimentos

“Uma voz feminina para contar a história”

Ana Elisa Ribeiro

“No conto "Licença, nada", busquei retomar alguns elementos comuns na literatura de Trevisan. Neste caso, os pontos de ônibus, lotações cheias, motoristas, ageiras, gente em trânsito pela cidade, sem perder de vista o assédio. Só que procurei uma voz feminina para contar a história. Desta vez, a assediada reage. O olhar masculino está lá, mas a jovem (geralmente são ninfetas) não é exatamente submissa. Não emulei a linguagem do autor homenageado. Reli parte grande de sua obra e procurei pelos ambientes, pelas atmosferas, para daí buscar compor uma história breve, com hormônios em polvorosa, mas sem dar licença aos narradores masculinos, nem aos personagens. Licença, nada!”


“Fiz um conto sobre desejo com uma morta-viva”

Cristhiano Aguiar

“Eu sabia desde o início que queria fazer um conto sobre desejo. O erótico é uma das dimensões que mais me fascina na obra de Dalton Trevisan. Além disso, sendo um autor de literatura fantástica com influência do horror, eu não resisti a levar a alcunha “vampiro de Curitiba” até as últimas consequências. Assim, imaginei uma história de desejo e morte protagonizada por uma morta-viva. O desafio consistiu em homenagear o universo de Dalton dentro da minha própria poética. Eu identifico algo sensacionalista e de um deboche em sua linguagem e personagens. Foi por esse caminho que segui, trocando Curitiba por Campina Grande, misturando o pop, o gótico, o bolero e a minha infância e adolescência evangélicas na criação de um mundo insólito que constitui uma autêntica chanchada de horror.”


“Aula de canto com Joyce e Mansfield”

Luci Collin

“Além de sua extraordinária obra, sempre me impressionou o Dalton Trevisan editor da revista ‘Joaquim’ (1946-48) que, entre outros feitos, publicou o primeiro fragmento de ‘Ulysses’, de James Joyce, no Brasil. Foi o que me instigou a escrever o ‘Aula de canto’. Dalton era um ardoroso joyceano (inclusive, deixou inacabado um conto chamado “Ulisses em Curitiba”), então, em homenagem a ele, estruturei meu conto em 18 partes, como o romance do autor irlandês, e segui, em linhas muito gerais, a ideia do triângulo entre um homem comum (Leônidas), sua esposa (Mila) que dá aulas de canto, e um aluno dela (Jaime).

À exceção desse trio, os outros personagens são menções a pessoas que existiram de fato, como também são reais todas as referências a logradouros da cidade. A ação se a entre 8 e 9 de dezembro de 1959, data da histórica Guerra do Pente em Curitiba. Nesse mesmo ano Dalton lançou ‘Novelas nada exemplares’, que está sendo lido (escondido) por Mila. E em um 9 de dezembro Dalton nos deixou.

Também o título, homônimo do famoso conto de Katherine Mansfield, remete a Dalton, uma vez que a escritora neozelandesa foi um dos “amores platônicos” do vampiro curitibano (amor, aliás, ficcionalizado em diversos livros seus). Cem anos do nascimento de Dalton e ele está eternizado nos Nelsinhos, nas Polaquinhas, Ritinhas, Dinorás, Marias e Joões que seguirão pulsantes não só na vida cotidiana da Capital das Araucárias, mas por todo o Brasil, como atestam os contos dessa coleção recém-lançada pela Autêntica.”


“Paranoias, obsessões e alguma violência”

Mateus Baldi

“Quando chegou o convite para integrar a antologia, quis escrever uma história que já estava há algum tempo me rondando: um sujeito se encanta por uma cantora da noite curitibana e a convida para arem a madrugada juntos. O fato de ele ser enfermeiro num hospital psiquiátrico só piora tudo. Fiquei feliz em poder homenagear Dalton com uma trama paralela ao clássico "Uma vela para Dario" e evocar a mítica Patachou da boate Vogue, em Copacabana, num encontro cheio de paranoias, obsessões e alguma violência.”


“Uma inocência sonsa e trágica”

Luís Henrique Pellanda

“Sempre quis ser escritor, desde criança, mas, criado num bairro suburbano de Curitiba, vinha de uma realidade distante de qualquer tradição de leitura e escrita. Achava que escrever, a partir do lugar onde nasci, era impossível. A obra do Dalton foi o que me mostrou, ainda no fim da infância, que Curitiba era também universal e que minha vida e meu ambiente poderiam ser viáveis como narrativa literária. Mais tarde, já escritor, e já tendo lido e relido tudo que o Dalton escreveu, me vi morando no Centro da cidade, a duas quadras da casa dele. Sempre o via subindo e descendo a rua, ou levando o lixo até a esquina. Nunca nos falamos, nem ao menos nos cruzamos na Ubaldino do Amaral, mas trocamos livros durante um breve período. Minhas filhas sempre me perguntavam: É o vampiro ali? Eu dizia que era. E elas, brincando: Ele não morre nunca? E eu: Nunca.

Quando escrevi “O gateiro”, quis levar um pouco do universo do Dalton para o subúrbio de onde saí, para uma paisagem que ele apreciava, mas à qual, na verdade, não pertencia. E pensei que, num texto-tributo a ele, não deveriam faltar certos elementos: miséria, ridículo, erotismo, vergonha, humor, desejo de amar e de vingar-se, alguma raiva, algum amor, alguma inocência prestes a ser perdida. Uma inocência sonsa e trágica, que se fantasiasse de pureza. E uma paixão real, quase uma tara, capaz de mover mundos, ou pelo menos o mundo do personagem e o de tanta gente ao longo dos séculos: a paixão pelos gatos.”


Contadores de histórias

Os autores dos contos que integram a coletânea “Os elefantes viriam pela manhã”

• Adelaide Ivánova
• Ana Elisa Ribeiro
• Caetano W. Galindo
• Carlos Marcelo
• Cristhiano Aguiar
• João Anzanello Carrascoza
• Luci Collin
• Luís Henrique Pellanda
• Marcelino Freire
• Mateus Baldi
• Noemi Jaffe
• Rogério Pereira
• Veronica Stigger

'Os elefantes viriam pela manhã: Treze contos à procura de Dalton Trevisan'
"Os elefantes viriam pela manhã: Treze contos à procura de Dalton Trevisan" Reprodução

“Os elefantes viriam pela manhã: Treze contos à procura de Dalton Trevisan”


• Rogério Faria Tavares (org.)
• Autêntica
• 144 páginas
• R$ 59,80
• Lançamentos neste sábado, às 11h, em São Paulo, na Feira do Livro (Praça Charles Miller, Pacaembu), e em Belo Horizonte, no dia 5 de julho, na Livraria Quixote

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