O eterno retorno do ciclista
Edição ilustrada de um dos contos marcantes é resultado da experimentação de Dalton Trevisan com o personagem a partir de reportagem publicada nos anos 1950
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“Curvado no guidão lá vai ele numa chispa
– e a morte na garupa.
Na esquina dá com sinal vermelho, não se preocupa,
levanta voo na cara do guarda crucificado.
Um trim-trim da campainha,
investe os minotauros do labirinto urbano.
Livra a mão direita, abre o guarda-chuva.
Na esquerda, lambe deliciado o sorvete
de casquinha, antes que derreta (...)”
“Dalton pedalou este texto diversas vezes”, lembra o professor de Literatura Augusto Massi, da Universidade de São Paulo (USP), no posfácio da edição ilustrada de “O ciclista” (2024 - editora Reco-Reco, selo do grupo editorial Record), do escritor curitibano Dalton Trevisan (1925-2024). Catalogado na nova edição como literatura infantojuvenil, “O ciclista” é, na realidade, uma obra para adultos com a narrativa de um homem sobre duas rodas no caos do trânsito urbano.
A saga no selim começa com a reportagem “A morte do ciclista”, na Gazeta do Povo, em 25 de outubro de 1952. Em seguida, vira ficção no mesmo jornal, em 3 de agosto de 1953, e chega ao livro “Desastres do amor”, em 1968. Trevisan revisou, mexeu e remexeu no conto até encurtá-lo para cinco parágrafos.
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“No trânsito entre a primeira e a terceira versão, o ciclista perdeu o nome próprio pelo caminho, deixou de entregar sorvete em domicílio, substituiu o chapéu por um boné e trocou o fom-fom, onomatopeia da buzina de automóvel, pelo tradicional trim-trim da campainha de uma bicicleta”, explica Massi.
Em 2014, o ciclista ou por nova transformação no último volume de inéditos lançado por Trevisan, “O beijo na nuca”, com o conto “Pardais” (“Senhor redator: assíduos leitores de sua querida seção 'Na Polícia e nas Ruas”, verificamos que a mais ninguém chama atenção uma notícia diária de 'Ciclista Atropelado' ou 'Mais um ciclista 'atropelado'”.).
E com o conto “Josué” – no qual o ciclista ganha nome (“Agora todos sabemos, Josué, da sua curta biografia. Precisou morrer para ser lembrado, ao menos por instante. Josué dos Santos, ciclista do sem-fim azul e, ao que parece, funileiro autônomo”).
No ano ado, nova reviravolta com o lançamento da versão enxuta e definitiva, ilustrada pelo paulistano Odilon Moraes. Como Trevisan morreu em 9 de dezembro de 2024, aos 99 anos, seria mesmo a versão definitiva? De qualquer forma, avalia Massi, “o eterno retorno ao local do crime demonstra que 'O ciclista' sempre representou para o escritor um campo de experiências.”
“O ciclista” tem o DNA de Trevisan, seco, conciso, visceral: “Se não estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e – uma perna mais curta – foge por entre as nuvens, a bicicleta no ombro. Em cada curva a morte pede carona. Finge não vê-la, essa foi de raspão, pedala com fúria. Opõe o peito magro ao para-choque do ônibus. Salta no asfalto a poça d'água.”
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O escritor envolve o leitor com metáforas, ora fazendo crer que o ciclista desafia e é engolido pelo trânsito louco, ora criando um viés fantástico e fabular fazendo o ciclista alçar voo em meio à “lâmpada de Aladino” e aos “minotauros do labirinto urbano.” Fato é que “O ciclista” pedalou por sete décadas até o primeiro quarto do século 21 e segue atualíssimo na pele de homens e mulheres que fazem malabarismos com suas magrelas, desafiam o inferno urbano de carros, motos e ônibus a ameaçá-los a cada segundo.
“O CICLISTA”
• De Dalton Trevisan
• Reco-Reco (Grupo editorial Record)
• 40 páginas
• R$ 47,90