A geografia do tempo de Ary Quintella
Livro mescla crônica, ensaio, autobiografia, crítica e diário de viagem para revelar "lugares importantes que moram em nós", como diz o autor
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“Senti que havia vencido o tempo, as gerações, a geografia, a morte.”
A vida é uma agem que tenta ser captada no instante em que a. Seria a geografia do tempo ou o tempo da memória, que tenta captar a realidade de algo que não volta mais, mas que fica plasmado no interior do ser e que só ele pode usufruir porque o viveu?
“O tempo, porém, nem ruge nem urge. O tempo não existe, ele é uma abstração que inventamos na tentativa inútil de dar alguma coerência às nossas vidas. Existe apenas o tempo interior, próprio a cada um de nós” (p.107). Esta é a realidade que Ary Quintella tenta transmitir ao leitor. A realidade não existe por si só, mas é um constructo de elementos externos, internos, conscientes ou não, que despertam sentimentos e lampejos difíceis de serem explicados.
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A geografia do tempo está composta por 32 textos, escritos de 2016 a 2023, um recorte no tempo, mas apesar de datados talvez tenham sido iniciados em outra data – este é apenas um recorte arbitrário do tempo. Chamei-os de textos, pois são vários: ensaio, crônica, autobiografia, diário de viagem, crítica literária e artística.
O gênero não se define na escrita do autor, os gêneros se misturam às vezes, de uma viagem a outra. Como diplomata, Ary viaja e já viajou muito. Ele teve como recente ponto semifixo a Malásia e, de lá, viajou por terras adas e presentes, por tempos longínquos e presenciais. Como diz o autor: “Os lugares importantes moram em nós. Vão conosco a toda parte. A ideia desses lugares, o que eles representam, está em nós” (p.128).
Para captar estes lugares, Ary faz uso dos vários sentidos. Ouve concertos, vê quadros, lê livros, e escreve o que retém. Assim vê o mundo acontecer, sentindo. Pensa, reflete, escreve e transmite ao leitor, com uma necessidade de captar a urgência do tempo. Não este tempo eletrizante que a sociedade vive no presente, mas com uma paz interna de quem já viu e viveu e agora quer usufruir do momento com os demais. A urgência do tempo ficou para trás.
Os livros, livreiros, bibliotecas estão presentes em todos estes lugares. Não apenas os menciona, mas explica ao leitor onde ficam, como são, o que encontrar especificamente em cada um. Como afirma Cora Rónai, a biblioteca “é um mapa da geografia dos sentimentos de quem o construiu”.
E assim Ary Quintella guia o leitor, até de forma didática, mencionando quais para ele são os autores mais significativos, dos quais o leitor talvez pouco conheça. Ficamos conhecendo algo da biografia destes escritores, de uma ou de várias obras, desde o conteúdo até uma ligeira crítica literária, do ponto de vista pessoal.
O leitor percorre o mundo e cada um de seus tempos: Tolstói, Chateaubriand, Stendhal que “viveu, escreveu, amou” (p.74), até aqueles escritores mais próximos como Clarice e Vieira.
De Borges cita o seguinte verso: “El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo”. (p. 191).
Há um alívio com a morte, com tantos mortos queridos, aos quais Ary ainda tenta agarrar-se ao que deles resta, visitando os restos mortais arquivados em cemitérios espalhados pelo mundo. Ao mesmo tempo em que deixa o tempo fluir, também quer agarrá-lo. O consolo é que “a morte nos libertará do triste hábito de ser alguém.” (Carlos I, p. 195).
E poderíamos continuar museus adentro, quadros que inspiraram, visões que não saem dos olhos, mas não há dúvida de que Ary nos revelou que a escrita é a presença constante para manter a manivela da vida rolar adiante. Dele poderiam ser as palavras de Geoff Dyer: “Reading, which gave me a life, is now just part of that life” (p. 88), uma parte significativa da vida.
* Monica Rector é doutora em estudos neolatinos e em linguística. Lecionou linguística em universidades brasileiras e literatura de países de língua portuguesa na Universidade da Carolina do Norte (EUA). É autora e editora de 30 livros.
“GEOGRAFIA DO TEMPO”
• Livro de Ary Quintella
• Andrea Jakobson Estúdio
• 240 páginas
• R$ 65